El Greco e Da Vinci – paralelos de cor, corpo e espaço

Por Silmara Fonseca Alvim e Maria Elena Venero Ugarte

El Greco c. 1600 Óleo sobre tela 107 cm × 74 cm Museu de Arte de São Paulo, São Paulo

El Greco
c. 1600
Óleo sobre tela
107 cm × 74 cm
Museu de Arte de São Paulo, São Paulo

O fascínio de Leonardo da Vinci pelos diversos temas científicos e, sobretudo, pela anatomia do corpo são enormemente conhecidos e exaustivamente abordados na História da Arte. Ao executar suas composições, Da Vinci transporta seus conhecimentos do corpo humano para elaborar suas obras conforme suas observações do mundo visível, resultando em míticos trabalhos realísticos que traduzem toda a essência do Renascimento italiano.

Em uma primeira abordagem, destacamos a vida de Leonardo da Vinci partindo da visão biográfica de Vasari, retratando desde sua introdução no mundo artístico até sua morte, transitando sobre algumas de suas mais importantes e influentes obras cujas existências ditam ainda hoje as referências artísticas as quais buscamos conhecer.

Neste segundo momento, traremos um novo ponto de vista, com a intenção de traçar alguns paralelos entre a produção de Da Vinci e a produção de algum/um artista do Maneirismo, nesse caso, El Greco.

MANEIRISMO

Para fins de breve contextualização, deve-se compreender de que se trata o Maneirismo. Como um movimento artístico contemporâneo ao (Alto) Renascimento, esse movimento artístico buscou romper com a representação naturalista da tradicional escola florentina, trazendo para o mundo das artes trabalhos que trazem impressões “artificiais” e “esquisitas”, muitas vezes como objeto de inspiração para criações surrealistas posteriormente no século XIX (FARTHING, 2010). Ainda que classificado por muitos autores como um movimento cuja subjetividade torna sua caracterização complexa, Farthing (2010) enumera alguns pontos predominantes e frequentes nas criações Maneiristas, dentre elas o alongamento proposital do corpo e suas partes e o emprego de cores exageradas e a princípio desarmoniosas, o que traduz a maior liberdade de criação entre os artistas do movimento.

A ANUNCIAÇÃO

Leonardo da Vinci 98 cm x 2,17 m  Galleria degli Uffizi Criação: 1472–1475  Têmpera, Tinta a óleo

Leonardo da Vinci
98 cm x 2,17 m
Galleria degli Uffizi
1472–1475
Têmpera, Tinta a óleo

El Greco c. 1600 Óleo sobre tela 107 cm × 74 cm Museu de Arte de São Paulo, São Paulo

El Greco
c. 1600
Óleo sobre tela
107 cm × 74 cm
Museu de Arte de São Paulo, São Paulo

Este é um dos temas mais recorrentes da História da Arte. A religião em si, sempre teve sua majoritária fatia de representação artística e as diversas Anunciações conhecidas nos trazem um leque de possibilidades interpretativas e comparativas no que se refere aos mais variados estilos da pintura.

Para os fins deste ensaio, traçaremos um paralelo entre a Anunciação de Leonardo da Vinci, Renascentista, e uma das diversas Anunciações de El Greco, ícone do Maneirismo. Abaixo as imagens dos dois trabalhos, sendo o de El Greco a versão que se encontra exposta no MASP desde 1952.  Alguns pontos possuem maior evidência nas duas obras, a saber:

Espaço – No trabalho de Da Vinci, é possível perceber o espaço representado tomando por base a perspectiva. A riqueza de detalhes da folhagem do chão, o plano de fundo que nos dá ideia de profundidade e suas árvores como notáveis coadjuvantes dão o tom renascentista a esse belíssimo trabalho. Por outro lado, a representação de espaço na obra de El Greco remete mais ao bidimenssionalismo: não há um plano claro onde as figuras se apoiam; nota-se um altar, mas não podemos dizer claramente onde toda cena está ambientada. O anjo por sua vez flutua, doando um toque irreal ao trabalho, peculiarmente maneirista.

Cor – Analisando a execução da pintura leonardiana, é clara a intenção naturalista do artista. As cores foram aplicadas de forma a confundir o pictórico com o mundo real, e o seu conhecido sfumato, juntamente com o jogo de luz e sombra contribui para a obtenção desse efeito. Wolfflin (2006) define essa questao do renascimento, ressaltando que “a simples presença de linhas não define o caráter linear, e sim, (…) a força expressiva destas linhas (…).”,  Já a Anunciação de El Greco traz cores que, combinadas, nos causam certa estranheza à primeira vista. A busca da ruptura com o Renascimento e o propósito de estilização da criação explicam esse curioso uso das cores.

Corpo – A conhecida aptidão cientifica de Leonardo da Vinci trouxe resultados memoráveis às suas criações artísticas. Apesar de a Anunciação ter sido a sua primeira pintura independente, a influência renascentista e sua obsessão com as formas do corpo se mostram muito marcantes nesse trabalho. Ainda que algumas formas se apresentem desproporcionais, não podemos afirmar que se trata de algo proposital, como no maneirismo. A intenção de Leonardo é se aproximar da natureza, dialogar com o divino através da perfeição da forma. Em outra ótica, El Greco se mostra fiel ao estilo maneirista. A despreocupação com a representação do corpo está nítida no rosto alongado da virgem e nos braços disformes do anjo que, ao contrario do sfumato de Leonardo, possuem contornos bem marcados. Outro ponto observável a representação pictórica das nuvens, que aparecem mais como uma sugestão do que uma tradução realística do céu, trazendo para o observador uma dualidade entre o real e o imaginário, já mencionados como característicos do maneirismo.

OUTRA ANALISE DE EL GRECO

El Greco Óleo sobre Tela 4,8 m x 3,6 m 1586–1588 Igreja de São Tomé, Toledo, Espanha

El Greco
Óleo sobre Tela
4,8 m x 3,6 m
1586–1588
Igreja de São Tomé, Toledo, Espanha

El Greco nos traz em uma de suas criações, a possibilidade de apreciar o maneirismo e as formas naturais em uma única pintura. Em “O enterro do Conde de Orgaz” a composição está dividida no que chamaremos aqui de dois hemisférios. Na parte inferior há uma maior harmonia de cores e formas, os bordados e panejamentos estão pintados com maior proximidade com a realidade e há, inclusive, um auto retrato do pintor e um retrato de seu filho entre os espectadores do enterro (FARTHING, 2010).

A criação tipicamente maneirista esta representada no hemisfério superior. Mais uma vez os membros alongados, as cores exageradas e o tom de pele “fantasmagórico” se unem, permitindo ao observador compreender melhor o estilo maneirista, sendo “o Enterro” uma bela tradução da liberdade de criação e estilização peculiares deste movimento.

Curiosidades de interpretação

A título de curiosidade mencionamos neste post as intervenções de outras áreas na análise das obras de renomados pintores. Por exemplo, em 1913, no campo da medicina, Germán Beritens levanta algumas hipóteses ao respeito dos traços alongados nas obras de El Greco e de outros artista quando diz: “Se tivesse vivido em nossos tempos, certamente não teria deixado esses quadros anômalos, essas figuras que escandalizam y que nos deixam acreditar na loucura de El Greco. Com o uso de óculos cuidadosamente elegidos, teria pintado com todo conforto, e suas obras tivessem sido perfeitas”.

Por incrível que pareça, atualmente essas observações ainda encontram eco e não é difícil achar explicações “científicas” para entender o processo criativo do artista.

Leia mais em: http://www.elconfidencial.com/cultura/2014-03-09/los-ojos-del-greco-el-pintor-astigmatizado_98812/ (Acesso em: 12 de novembro de 2014)

Veja também:

<http://www.miguelpadilha.com.br/novidades/os_olhos_sob_o_olhar_dos_artistas_.htm> (Acesso em: 10 de novembro de 2014)

Referências Bibliográficas

FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Sextante, 2010. p. 202 a 209

GOMBRICH, Ernst H. Uma crise da arte. In: ______. A História da Arte. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 2000. p.361 a 374.

SELMIKAITIS, Isis. A “Anunciação” de El Greco do Masp: Um estudo sobre seu contexto de criação e recepção. Em: <http:/ /www.unicamp.br/chaa/rhaa/atas/atas-IEHA-v2-041-47-isis%20selmikaitis.pdf>. Acesso em: 12 de novembro de 2014.

VASARI, Giorgio. Leonardo da Vinci. In: ______. Vida dos Artistas. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2011.

WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

< http://masp.art.br/masp2010/acervo_detalheobra.php?id=123 >. Acesso em: 12 de novembro de 2014.

5 pensamentos sobre “El Greco e Da Vinci – paralelos de cor, corpo e espaço

  1. Muito interessante a comparação de vocês, acho que a fim de complementar para o estudo, Wölfflin seria um historiador interessante, através dos seus conceitos fundamentais vocês poderiam ter explorado mais a questão do espaço e do corpo, apesar dos conceitos dele não se encaixarem totalmente no maneirismo, seria uma abordagem interessante para pensar.

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    • Oi Bia! Obrigada por ler e pela sugestao! Nos da conservacao e restauracao nao estamos muito familiarizados com autores da historia da arte, mesmo considerando que wollflin foi abordado em sala, entao a sua dica e importante!

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  2. Concordo com a Bia. Talvez com uma abordagem através Wölfflin o trabalho ficaria com uma base teórica mais forte, que foi o que senti que falta nesse trabalho. No entanto, ainda assim é um trabalho bem feito e que poderia ser desenvolvido, mais tarde, com mais profundidade. Outro ponto positivo é que pegaram os dois artistas mais importantes e emblemáticos de cada época e conseguiram fazer uma comparação incomum, que não pode ser achada pronta em outros lugares (o que mostra que realmente tiveram que pensar e desenvolver o trabalho e não somente pegar um texto e falar sobre ele).

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  3. Gostei muito da forma como fizeram a comparação entre os dois artistas, levando em consideração o espaço, a cor e o corpo. Refleti, aliás, sobre a forma como estamos acostumados a “organizar” a história da arte, sobre a necessidade que temos de classificar e categorizar os estilos e períodos artísticos, como se essa divisão pudesse facilitar a nossa compreensão da história. Na verdade, essa reflexão vale para todos os trabalhos. Penso que é importante buscarmos nos desvencilhar de classificações muito abrangentes para que a arte não pareça, desta forma, uma disciplina acadêmica somente. Para isso, sugiro a leitura de “Maneirismo: a crise da Renascença e o surgimento da arte moderna”, de Arnold Hauser, essencial para a avaliação da amplitude desse movimento conhecido como Maneirismo.

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  4. Gostei bastante da estrutura do trabalho e achei muito pontual a forma como os dois artistas são comparados, é interessante analisar duas obras juntas para notar com clareza as diferenças entre elas. Porém senti falta de uma maior contextualização histórica, que na minha opinião teria ajudado a compreender melhor as divergências entre o Renascimento e o Maneirismo, não ficando apenas numa análise da imagem, mas sim do que ela representa como um todo diante do momento em questão.

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